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O Solfejo do Objeto Sonoro – 9
SCHAEFFER, Pierre & Guy Reibel. Solfège de l’Objet Sonore. Paris: Editions du Seuil, 1966. (tradução portuguesa de António de Sousa Dias, 2007).
Quinto tema de reflexão: Ataques artificiais e características secundárias de ataque nos sons prolongados. Nos exemplos precedentes, lidámos com uma morfologia sonora bem particular, a das percussões-ressonâncias, para as quais o ataque é uma característica primordial. Que acontece no caso dos sons sustentados[/prolongados], para os quais o ataque não é mais que uma característica secundária? Comparemos um mib de flauta com a sua cópia, na qual foram suprimidos os primeiros 50 ms:
CD 2 18 mib de flauta seguido da sua cópia com 50 ms suprimidos no início
Apercebemo-nos aqui de uma diferença mais subtil que nos fenómenos precedentes, e que provem do detalhe dos mecanismos instrumentais: os primeiros 50 ms fornecem uma espécie de ruído, um pequeno objecto preliminar, que não é senão o índice de causalidade, a irrupção do sopro no instrumento. Outro exemplo ainda mais conclusivo: um réb da mesma flauta, amputado do 1/20 de segundo [50 ms] inicial, é aliviado do silvo que se encontra no original:
CD 2 19 idem, réb
Ora, se fizermos esta mesma experiência com o trompete, não encontramos estas diferenças subtis. Isto deve-se ao facto do trompete ter um ataque nítido, cujo impacto no ouvido é, em todos os seus aspectos, semelhante a um corte direito praticado com tesoura na banda magnética. Se pelo contrário cortarmos um som de trompete obliquamente, o seu ataque é atenuado. Eis este ataque artificial, seguido do ataque original:
CD 2 20 som de trompete com ataque artificial “oblíquo” (corte de banda oblíquo) seguido do seu original
É necessário admitir que a inclinação do corte sobre a banda é um factor importante e que o corte dito normal [isto é, em ângulo recto], também deve ter provavelmente as suas características próprias. Iremos constatar, com efeito, que um som de violino, com um corte direito, após 50 ms, difere do original, cujo ataque é reduzido pela progressão do arco:
CD 2 21 som de violino com ataque artificial direito (corte em ângulo recto), seguido do som original
Poderemos recuperar, através de um corte oblíquo, a doçura do ataque original comprometida pelo corte direito? Sem dúvida, pois além disso, um ligeiro vibrato torna o nosso ouvido mais indulgente. Iremos ouvir, respectivamente para a flauta e o violino, um som, seguido de um corte direito e depois um corte oblíquo que restitui sensivelmente o [ataque] original:
CD 2 22 nota original; ataque artificial por corte direito; ataque artificial por corte oblíquo: sobre um dó4 de flauta, seguido de um sib3 de violino
Finalmente — e como prova da nossa habilidade — dois exemplos de clarinete. Cortes oblíquos artificiais ligam as notas da primeira escala, enquanto elas são ligadas naturalmente pelo instrumentista no original que se segue:
CD 2 23 duas escalas cromáticas descendentes de clarinete: com ataques artificiais (cortes oblíquos), seguido de sons originais
Resta-nos esclarecer um último ponto: os cortes que praticámos precedentemente nas nossas bandas magnéticas terão afectado os fenómenos de primeira ordem? Asseguremo-nos comparando dois cortes, direito e oblíquo, após um segundo, da mesma nota de piano:
CD 2 24 nota grave de piano amputada do seu primeiro segundo por um corte direito, depois por corte oblíquo
Última ideia: Transmutações instrumentais Se a percepção dos ataques e das dinâmicas se encontram estreitamente ligadas, e são constituintes, na sua maior parte, da percepção dos timbres, então deve ser possível passar de um instrumento a outro como nos revelaram, de forma tão curiosa, os cortes de piano sobre o lá3. Verificação: eis dois sons. Um é proveniente de um piano — sem nenhuma filtragem — unicamente graças a judiciosos cortes. O outro é um mi4 de flauta:
CD 2 25 mi4 de piano com ataque artificial seguido de mi4 de flauta
Prova inversa: partindo de um som de flauta, é-lhe conferido, graças a um modulador de forma [ADR noise gate], uma curva dinâmica inclinada, análoga à do piano. Comparemos esta flauta manipulada com o original:
CD 2 26 fá4 de flauta com forma artificial, seguido de fá4 do piano
Trata-se de algo mais que um truque de física de passatempo; esta audição de ilusionista levanta o véu sobre a noção de timbre — de todas as noções, a mais vaga e a mais contraditória. Ora, por um caminho bizarro, e como que por estranho espírito de contradição, constatamos o seguinte: alturas e ritmos mostram-se relacionadas; tempo e duração dissociaram-se; o ataque revelou-se distinto do instante inicial. E agora, a [estrutura] dinâmica (que os músicos chamam de nuance e os físicos nível) arrisca-se a tornar-se um dos factores do timbre, segredo da matéria sonora.