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O Solfejo do Objeto Sonoro – 8

SCHAEFFER, Pierre & Guy Reibel. Solfège de l’Objet Sonore. Paris: Editions du Seuil, 1966. (tradução portuguesa de António de Sousa Dias, 2007).

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CD 2 01     Quarto tema de reflexão

Quarto tema de reflexão: As anamorfoses temporais
O tempo não é apenas qualificado em duração musical, ele pode ser subvertido, “anamorfoseado” pelo ouvido tal como as dimensões do espaço são anamorfoseadas por um espelho deformador.
Primeira ideia: Paradoxo do ataque.
Tomemos rapidamente consciência, de um estranho fenómeno, até aqui, desapercebido:

 


CD 2 02     nota grave de piano

Eis a interpretação do senso comum: no início do som, um ataque, devido a uma percussão visível a olho nu, seguido de uma ressonância. De tesoura em punho, cortemos na banda magnética a porção inicial com uma larga margem de segurança. Cortemos não somente alguns milissegundos de fenómenos transitórios iniciais, mas sim cem vezes mais: um segundo por exemplo. Escutemos aquilo que resta:

 


CD 2 03     exemplo 02, com o início suprimido (1.0 s)

Misteriosamente idêntica à nota original, esta porção de nota, com o início cortado, apresenta ao ouvido a mesma qualidade [ou característica] de ataque. Ora essa! O martelo não percutiu a corda um segundo mais cedo? Por meio de que passe de mágica o voltamos a ouvir? Outra experiência:

 


CD 2 04     som de sino

Amputemos este som do seu ataque e também de uma grande porção do que se segue. Iremos reencontrar o mesmo fenómeno? O melhor é não ousar fazer mais prognósticos:

 


CD 2 05     exemplo 04 sem o início

Aqui tudo se passa normalmente: conseguiu-se isolar temporalmente, senão todo o ataque (pois resta um ataque secundário, um pseudo-ataque), pelo menos a parte mais visível deste:

 


CD 2 06     início do exemplo 04

Ei-lo aqui, desta vez, no instante inicial, correspondendo com realismo ao instante em que o maço percutiu o sino. Experimentemos com um prato abafado: escutemos primeiro o original, depois a cópia privada do seu início:

 


CD 2 07     som de prato, depois o mesmo com o início suprimido

para o prato assim tratado, nenhuma diferença. Eis-nos completamente confundidos. E no entanto, um fé elementar fazia-nos crer que, para o ouvido, o ataque coincidia com o instante da percussão física. Nós próprios fomos prisioneiros desta crença durante anos. Assim tentamos comparar, em duas notas de violino, as características de ataque, isolando os primeiros 50 ms. Eis dois mi de violino, corda solta:

 


CD 2 08     dois mi4 de violino na corda solta

E eis o vigésimo de segundo [ou 50 ms] de cada um dos seus ataques:

 


CD 2 09     os primeiros 50 ms dos dois sons do exemplo 08

Sendo muito semelhantes estas porções iniciais, procurámos visualizá-las num osciloscópio para procurar traçados semelhantes. Nenhum resultado positivo. Então recomeçámos as mesmas experiências sobre as oito porções iniciais de um staccato de trompete:

 


CD 2 10     staccato de trompete

Os oscilogramas que figuram no capítulo XII do TOM [fig. 5, págs. 216-17], são visualmente muito diferentes cada um, enquanto que os oito ataques não são assim tão diferentes musicalmente. Que concluir de traçados assim tão caprichosos? Se o osciloscópio é obsoleto, teremos que recorrer ao computador para realizar uma análise mais fina do sistema complexo das vibrações transitórias? Eis um grande luxo para determinar as características musicais destes ataques relativamente equivalentes. Uma chave das correspondências, bastante mais simples, talvez se encontre noutro lado, e, talvez, não nos instantes iniciais. Por outras palavras: os instantes da nossa escuta não coincidem com os centímetros da banda magnética.
Segunda ideia: Ataques e dinâmica
Formulemos então uma hipótese: que a percepção de ataque se encontra ligado à forma geral dos sons. Por outras palavras, que o ataque é função da [curva] dinâmica. Retomemos a nossa nota grave original de piano, à qual iremos cortar em seguida 1/10 de segundo, 1.0 segundo e 1.5 segundo [supressão de 100, 1000 e 1500 ms]:

 


CD 2 11     nota grave de piano, depois a mesma após a supressão de 0.1, 1.0 e 1.5 segundos do seu início

Nenhuma diferença apreciável de ataque. Tomemos pelo contrário um lá3, de um piano medíocre. Eis esse lá3, seguido das suas cópias com cortes similares:

 


CD 2 12     idem para o lá3

As anamorfoses do piano grave e do lá3 não dão os mesmos resultados. Porquê? É aqui que a experiência auditiva deverá ser confrontada com observações físicas, sendo o único meio de estabelecer correspondências entre estas duas espécies de fenómenos. Notemos que a dinâmica do piano grave é sensivelmente uma recta e que apresenta claramente a mesma inclinação [para uma escala logarítmica de intensidades] — como nos podemos assegurar consultando a fig. 6 do TOM. Pelo contrário, para o lá3, esta inclinação não é regular senão durante os primeiros instantes: ela decai ao fim de um segundo, formando uma depressão, apresentando um novo pico no segundo seguinte. Então não será surpresa que o primeiro corte, após 1/10 de segundo, restitua sensivelmente o mesmo ataque, que o segundo corte resulte num ataque atenuado e que o terceiro corte, praticado no pico dinâmico, transforme de forma bizarra esta nota de piano num som aflautado. Re-escutemos estes três cortes:

 


CD 2 13     os três sons amputados de 12 [cortes de 100, 1000 e 1500 ms]

Logo, a diversidade dos ataques está associada às irregularidades da [curva] dinâmica. A quantidade de ataque encontra-se em relação directa com a inclinação da curva dinâmica. Deveremos encontrar sempre o mesmo ataque nos sons de dinâmica constante, independentemente do local de corte. Asseguremo-nos do facto, cortando um som sustentado de trompete e ao qual retiramos 1/2 segundo da porção inicial, depois 1.0 segundo, 1.5 segundos e finalmente 2 segundos.

 


CD 2 14     som sustentado de trompete, depois o mesmo após supressão de 0.5, 1.0, 1.5 e 2 segundos

Terceira ideia: Timbre de ataque e sons duplos
Ao ligar as percepções de ataque aos declives das curvas dinâmicas e às irregularidades do seu traçado, explicámos uma parte dos nossos paradoxos, mas não todos, pois estes inícios, como o do sino, são modificados por um corte, enquanto que percussões análogas, como as do prato, não são afectadas. Em vez de um sino, cuja [curva] dinâmica é caprichosa, experimentemos com uma nota de vibrafone, cuja dinâmica tem uma inclinação rigorosamente constante. A diferença entre prato e vibrafone não é desta vez devida ao “declive”, mas sim a uma outra característica de ataque: a “cor”. Eis o vibrafone original, seguido das cópias privadas do seu início em 1/10, 1/2 e 1 segundo:

 


CD 2 15     nota de vibrafone original, seguida de cópias da mesma após supressão de 0.1, 0.5 e 1.0 segundos iniciais do som

Note-se que ocorre uma mudança a partir do primeiro corte e que nos cortes subsequentes não há alteração [em relação a este primeiro corte]. A explicação é simples: é que o prato, ao ser percutido com uma baqueta de feltro, semelhante ao martelo do piano, não produz, ao contrário do vibrafone, um “som duplo”. Porquê duplo? Porque se compõe de um choque metálico muito breve e de uma ressonância tornada linear pela construção deste instrumento. Ouvir-se-á melhor o carácter duplo do som de vibrafone, confrontando os sons de piano, vibrafone e prato reproduzidos de trás para a frente. A interrupção brusca das três curvas dinâmicas, desta vez ascendentes, cria no ouvido uma perturbação, uma espécie de ruído, mas para o vibrafone acrescenta na sua porção final (pois o ataque vem agora no fim) [um efeito adicional], uma cor original devida ao impacto: a cor do ataque, complemento do declive, assim colocado em evidência:

 


CD 2 16     3 sons reproduzidos de trás para a frente (piano, vibrafone e prato)

 

 

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