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O Solfejo do Objeto Sonoro – 13

SCHAEFFER, Pierre & Guy Reibel. Solfège de l’Objet Sonore. Paris: Editions du Seuil, 1966. (tradução portuguesa de António de Sousa Dias, 2007).

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CD 2 66     Sétimo tema de reflexão

Sétimo tema de reflexão: Morfologia dos objectos sonoros.
Primeira ideia: Um aparelho electroacústico não é directamente um instrumento de música.
O homo faber é um experimentador, um manipulador, por vezes um bricoleur. Chegado a qualquer lado, olha à sua volta e, os céus ajudem seja o que for em que ele ponha as suas mãos. Aqui, hesitamos no limiar de uma porta, entre dois locais separados por um vidro. De um lado o estúdio, do outro a cabina[/régie]. O estúdio revela vestígios do passado: piano, timbales, contrabaixo, e, quem trabalha de coração aberto? É John CAGE, um famoso bricoleur combinado com músico por vezes genial. Ao piano preparado ele toca assim:

 


CD 2 67     excerto de Three Dances para 2 pianos preparados, John CAGE

Ora, mais ou menos na mesma época, no n. 37 da rua da Universidade, também se fazia uma enorme quantidade de experimentação, mas de ambos os lados do vidro. Pierre HENRY, do lado do estúdio, tocava também piano preparado, e eu próprio [Pierre SCHAEFFER], do lado da cabina, produzia umas escalas em fugato muito pouco ortodoxas com as últimas novidades em gira-discos, em 1948. Assim foi confeccionado aquilo a que chamámos, modestamente, Bidule en ut:

 


CD 2 68     excerto de Bidule en ut, Pierre SCHAEFFER e Pierre HENRY

Poder-se-ia então tentar fazer música dos dois lados da linha divisória, mas isso também poderia ser feito no limiar de uma porta que, segundo parece, os ruídos nunca tinham podido franquear para aceder ao domínio do musical. Não era a entrada dos artistas. Quando muito, a dos fornecedores.

 


CD 2 69     excerto de Porte Grince, Jean-Pierre TOULIER

Assim o ruído bate à porta da música, fá-la ranger, gemer. Donde a ambição de domesticar estes ruídos, de lhes impor as nossas escalas: donde a ideia, aparentemente lógica mas que se revelará estúpida, de fazer chegar a escala a não importa quem e a não importa o quê. Assim, este cão:

 


CD 2 70     latido de cão

rapidamente se tornou num cão sábio:

 


CD 2 71     cão “lírico”

Tentativas lamentáveis, justificadoras da famosa frase que "em matéria de invenção entra-se no futuro às arrecuas". Obviamente não poderiam atrair senão o desprezo dos especialistas. Mas como continuar? Que poderíamos extrair destas descobertas, tão rapidamente saldadas num falhanço?
Segunda ideia: Generalização do musical.
Os falhanços são facilmente explicados: "O oceano dos sons à minha frente", dissera o alemão MAGER, este oceano, quiseram-no esgotar com colheres de chá. Junta-se imprudentemente o concreto e o abstracto. Um ruído, retirado ao acaso do seu contexto causal, não pode ser facilmente incorporado numa estrutura musical cujas normas foram elaboradas por séculos de uso. Aqui o natural opõe-se ao cultural. Desenvolveram-se então três correntes de pensamento:
[1] Os ruidistas italianos, há alguns anos queriam incorporar o ruído na música.
[2] Os electrónicos de hoje querem-nos domesticar, submetê-los aos parâmetros dos seus esquemas.
[3] Quanto a nós, se pensamos dever generalizar as normas do musical, é na condição de limitar a nossa escolha do sonoro àquilo que chamaremos de objectos convenientes.
Eis alguns exemplos de tais objectos:

 


CD 2 72     sequência de sons complexos

Tais objectos são tão afastados da sua origem natural como do solfejo de Danhauser. Merecem ser escutados por si mesmos, pois, não mais que um som de violino, eles não estão lá para nos informar sobre acontecimentos exteriores à música. Queixam-se de que são demasiado ricos? Então aqui temos alguns mais pobres, mas também mais dóceis ao teclado numerado das sínteses electrónicas:

 


CD 2 73     sons electrónicos

Assim se poderiam opor, como o foram entre 1950 e 1960, duas generalizações do musical: uma dita concreta, a outra dita electrónica. Oposição estéril, que se tornaria o conflito de duas estéticas mesmo que de momento o problema seja apenas de técnica. Como usar com igual habilidade estas duas fontes, estes dois recursos inesgotáveis? Qual é finalmente o seu ponto comum, o seu método comum de análise? Não chegaremos aí tão rapidamente, pois, antes de descobrir a única noção essencial que possa ser comum a todos os seres musicais, a de objecto, é-nos necessário insistir pacientemente no abandono de algumas ideias adquiridas. Entre estas aderências, estas confusões, a mais perigosa á aquela que liga o efeito à causa, a nota ao instrumento.
Terceira ideia: O objecto [sonoro] não deve ser confundido com o corpo sonoro que o produz.

 


CD 2 74     três sons de chapa metálica

Os sons que acabámos de ouvir provêm do mesmo corpo sonoro. Trata-se de uma chapa acoplada com uma corda esticada, e atacada, seja por diversos tipos de baquetas, seja com um arco:

 


CD 2 75     dois outros sons provenientes da mesma chapa

Trata-se de um instrumento produtor de sons, mas não necessariamente um instrumento de música. Com efeito ele não nos garante, por meio de um registo concebido por referência a estruturas convencionais, sequências de objectos ordenados em valores. Pelo contrário, ele fornece uma diversidade considerável de objectos cuja disparidade não pode ser reconciliada com uma origem comum:

 


CD 2 76     dois outros sons (mesma chapa)

É necessário apreciar esta disparidade na sua variedade, estudar as diferenças de forma, de matéria, de produção sonora. Assim, exercitemo-nos a não recorrer às causas para confrontar os efeitos e a descobrir nos efeitos de sonoridade os critérios do objecto:

 


CD 2 77     quatro outros sons (mesma chapa)

Logo, os critérios do objecto não poderão ser relacionados com os do instrumento, um som não pode ser qualificado de forma alguma apenas porque provém das vibrações da madeira, do metal, de uma corda ou de uma membrana. O interesse principal é de comparar objectos que se assemelham, mesmo que provindos de corpos sonoros diferentes. Nada melhor, para esquecer as proveniências, que o anonimato da banda magnética. Ela vai desempenhar o papel da cortina de Pitágoras, que ocultando o orador, velava o seu gesto não deixando emergir senão o sentido. Mas a banda magnética arrasta consigo uma armadilha bem mais subtil. Nós cairíamos nessa armadilha se considerássemos o registo magnético como um objecto [sonoro] em si, ou ainda, se confundíssemos no mesmo fragmento magnético novas causalidades instrumentais face a novos objectos possíveis.
Quarta ideia: O objecto sonoro não é de forma alguma o fragmento gravado.
Mas no entanto ambos se assemelham muito. Pode-se crer acreditar que o capturámos e, com efeito, esse fragmento ao ser lido à mesma velocidade [de gravação], restitui-nos o fenómeno sonoro original:

 

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